Aos
desavisados, pode ter parecido que a aprovação do PL 7.376/2010 pela
Câmara dos Deputados, na noite de 21 de setembro, foi uma vitória da
democracia. Afinal de contas, o projeto impôs uma derrota aos setores de
extrema-direita representados por parlamentares como o ex-capitão Jair
Bolsonaro. Afinal de contas, dirão os otimistas, conseguiu-se criar a
Comissão Nacional da Verdade, antiga reivindicação de ex-presos
políticos e de familiares de desaparecidos políticos.
Ocorre que a
Comissão Nacional da Verdade — na configuração em que foi aprovada e
caso o Senado mantenha inalterado o texto do projeto — tende a resultar
em mero embuste, um simulacro de investigação, tais as limitações que
lhe foram impostas. Será preciso enorme pressão dos movimentos sociais
para que ela represente qualquer avanço em relação ao que já se sabe dos
crimes cometidos pela Ditadura Militar, e, particularmente, para que
obtenha qualquer progresso em matéria de punição dos autores
intelectuais e materiais das atrocidades praticadas pelos órgãos de
repressão política.
A verdade pura e simples é que o acordo
mediante o qual o governo aceitou emendas do DEM, do PSDB e até do PPS,
mas rejeitou sem apelação e sem remorsos as diversas emendas propostas
pela esquerda e pelos movimentos sociais, é a renovação da transição
conservadora de Tancredo Neves. O acordo que selou a “conciliação
nacional”, celebrado nos estertores da Ditadura entre o líder do
conservadorismo civil e a cúpula militar, foi preservado por Lula e
acaba de ser repaginado e remoçado por Dilma Roussef. Os militares são
intocáveis, não importa que crimes tenham cometido, e seus financiadores
e ideólogos civis idem.
Não foi por outra razão que o líder do
DEM, deputado ACM Neto, subiu à tribuna ao final da sessão, minutos
antes da votação decisiva, para elogiar “a boa fé e o espírito público”
da presidenta da República. “O Democratas está pronto para votar, pronto
para dizer sim à História do Brasil”, acrescentou gloriosamente. O
deputado Duarte Nogueira, líder do PSDB, também comportou-se à altura da
ocasião. Depois que o líder do governo, deputado Candido Vaccarezza,
dispôs-se a incorporar uma emenda conjunta da deputada Luiza Erundina e
do PSOL, Nogueira elegantemente pediu a palavra para objetar e declarar
inaceitável o seu teor. Foi o que bastou para o líder do governo
imediatamente recuar.
Muito sintomático do tipo de acordo que se
arquitetou, e do papel que se pretende reservar à Comissão Nacional da
Verdade, foram as repetidas homenagens que ACM Neto, Vaccarezza e até o
líder do PT, deputado Paulo Teixeira, prestaram ao ex-ministro Nelson
Jobim e ao seu assessor José Genoíno. Estes dois personagens foram os
leva-e-traz dos altos comandos das Forças Armadas nas “negociações”
entre estas e o governo ao qual deveriam prestar obediência. O líder do
governo foi mais longe em suas demonstrações de subserviência e chegou a
agradecer expressamente aos comandantes militares.
Na tribuna, o
deputado Paulo Teixeira fraudou a história ao declarar que, “como todos
sabem”, as violações ditatoriais “foram praticadas entre 1968 e 1980”!
Portanto, não houve golpe militar nem qualquer atrocidade entre 1964 e
1968. Gregório Bezerra não foi arrastado seminu pelas ruas de Recife. Os
militantes das ligas camponesas não foram executados pela repressão.
Comunistas não foram presos e torturados na Bahia. O tenente-coronel
aviador Alfeu de Alcântara Monteiro não foi assassinado na Base Aérea de
Canoas, e o sargento Manoel Raimundo Soares não foi atirado, de mãos
amarradas, nas águas do Guaíba. Nada disso. E, para arrematar, o líder
do PT citou a boa tese de Tancredo: a “conciliação nacional”, a ser
propiciada pela Comissão Nacional da Verdade.
O setor da esquerda
que embarcou no acordo para manter viva a Ditadura acredita piamente
que não é possível, nem desejável, avançar um milímetro em punições,
porque a correlação de forças está dada, ad eternum, desde a transição.
Nisso, consegue apequenar-se perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, que, ao julgar o caso da Guerrilha do Araguaia, decretou que
“as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e
sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a
Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos” e que “são
inadmissíveis as disposições de anistias, as disposições de prescrição e
o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam
impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações
dos direitos humanos, como tortura, as execuções sumárias,
extrajudiciárias ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados”.
Mas
qual será mesmo a finalidade da Comissão Nacional da Verdade, se contar
com apenas sete membros, alguns dos quais poderão ser até militares; se
não dispuser de autonomia financeira; se tiver de investigar quatro
décadas em apenas dois anos; se for sujeita ao sigilo; e, finalmente, se
não puder remeter suas conclusões ao Ministério Público e à Justiça,
para que os autores dos crimes e atrocidades cometidos pela Ditadura
Militar sejam julgados e processados na forma da lei?
A resposta é
uma só. Na visão desse setor que envergonha a memória dos heróis
tombados na luta contra a Ditadura, ela foi assim enunciada pelo
ex-ministro Nilmário Miranda: “O objetivo principal da Comissão da
Verdade é produzir um relatório que seja base para os currículos
escolares. Essa que é a grande novidade, nunca tivemos isso na história
do Brasil”.
Por Pedro Estevam da Rocha Pomar
Fonte: Brasil de Fato
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