Desde
o último 7 de setembro, em meio às comemorações do Dia da Independência e às
manifestações do Grito dos Excluídos, nos vimos de certa forma surpreendidos
com a Marcha contra a Corrupção. Em alguns lugares, os participantes superaram
os expectadores dos desfiles e discursos oficiais, misturando-se e rivalizando
com a mobilização em torno da 17ª edição do Grito.
É
sabido e notório que, de algum tempo para cá, os movimentos e organizações
sociais passaram por crises, momento de apatia, perplexidades, encruzilhadas...
Mas o terreno, embora movediço, nunca deixou de ser fértil. As Semanas Sociais
Brasileiras, o Grito dos Excluídos, a Campanha Jubileu Sul, as várias edições
do Fórum Social Mundial, os diversos Plebiscitos, a Consulta e as Assembléias
Populares, a Via Campesina, o Grito dos Excluídos, a Campanha da Ficha Limpa...
Sempre representaram uma espécie de primavera no outono e inverno da luta
popular.
Não
seria a Marcha contra a Corrupção mais um desses botões que dão vida nova ao
marasmo geral, anunciando o início da primavera? Primavera é tempo de amores,
cores, sabores, flores... Rimas que abrem perspectivas inusitadas, horizontes
cada vez mais amplos. Vale a pena debruçar-se mais de perto sobre essa
mobilização.
Vinho novo
De
início, algumas características da Marcha contra a Corrupção. O uso da Internet
é notável. Como o subcomandante Marcos, no grupo indígena mexicano, também
neste caso a informática representou um meio de chamamento à mobilização. Ou
seja, a idéia de vias alternativas à prática da política corrupta pode conviver
com a tecnologia de ponta. Alternativa não é sinônimo de artesanato. Convém não
esquecer a ambiguidade da técnica. Ela tanto pode alienar como levar a um
engajamento libertador. No curso da história, por exemplo, é fácil reconhecer
um grande paradoxo da tecnologia mais avançada. De fato, ela se encontra hoje
nos meios mais sofisticados de cura medicinal e, simultaneamente, nas máquinas de
guerra mais letais ou nos instrumentos mais devastadores da natureza. Isto não
quer dizer que a tecnologia é neutra. Mas seu uso pode ser orientado para
pavimentar a estrada de uma civilização do "bem viver”.
Outra
característica da Marcha contra a Corrupção está na quantidade de pessoas que
aderem às manifestações. Fiquemos com um exemplo apenas, mas significativo por
tratar-se da capital federal. De fato, em Brasília, foi menor o número dos que
a partir das arquibancadas se contentaram com um patriotismo passivo,
aplaudindo os festejos oficiais, do que as pessoas que resolveram descer ao
gramado e jogar o jogo, mostrando um patriotismo combativo frente a corrupção
endêmica. Num tempo de "vacas magras” em termos de mobilização, não é fácil
levar às ruas e praças tantas centenas ou milhares de pessoas. Vem à tona,
quase espontaneamente, o movimento e o entusiasmo dos "caras pintadas”, por
ocasião do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Aliás, também
aqui houve quem saísse de cara pintada.
Novo
botão da primavera cidadã, a Marcha tem uma função dupla: por um lado, expõe à
luz do sol aquilo que se passa nos corredores obscuros de uma prática política
histórica e estruturalmente viciada. Revela os vícios e vírus de nossa "rex
publica”. Por outro lado, levanta a bandeira de uma nova visão nacional quanto
ao uso correto do erário público. Ela é sintoma de um olhar mais aberto e agudo
sobre as ações políticas e, ao mesmo tempo, chama a uma tomada de consciência
crescente. Numa palavra, tende a ser positivamente contagiosa. Vinho novo que
borbulha e gera uma espuma que pode movimentar as águas paradas.
Perguntas sem resposta
Mas a
Marcha contra a Corrupção exerce um papel fundamental. Papel que o
sensacionalismo e a espetacularização midiática costumam deixar a meio caminho.
Ela põe em pauta uma série de interrogações que, sistematicamente, ficam sem
resposta. Ultimamente, temos assistindo a um crescente número de "operações” da
Polícia Federal, da Promotoria ou do Ministério Públicos. Operações que se
caracterizam por seus nomes exóticos e pelos milhões ou bilhões de reais
desviados do orçamento da União, dos Estados ou dos Municípios.
Perguntas
que não querem calar: para onde vão esses milhões e bilhões de reais? São
bloqueados, confiscados e retornam aos cofres públicos? Ou permanecem ocultos
nos mais diversos paraísos fiscais? E quanto aos crimes de formação de
quadrilha, prevaricação, fraudes, desvio e apropriação indevida de recursos
públicos, nepotismo, tráfico de influência... Quais as penas? Como e onde são
cumpridas? Até que ponto a "faxina” da presidente Dilma Rousseff desce aos
porões sujos e sórdidos das "maracutaias” tecidas por seus subordinados de
primeiro, segundo e terceiro escalões?
Tudo
indica que, ao contrário de punição, recebem prêmios. Tais criminosos, não
raro, são coroados como uma nova promoção ou eleição. Voltam de cabeça erguida
aos postos ocupados anteriormente. Silêncio total sobre o passado, nenhum
constrangimento quanto ao presente, felizes perspectivas para o futuro. Enquanto
a corrupção é premiada diante dos microfones, câmeras e holofotes, a ética põe
o rabo entre as pernas e se encolhe com vergonha de fazer da política um meio
de buscar o bem-estar social. A astúcia e a esperteza tomam o lugar da justiça
e do direito. Os privilégios das velhas oligarquias permanecem intocáveis,
enquanto os serviços públicos, particularmente à população de baixa renda, se
notabilizam pela precariedade.
Resta
ainda a pergunta sobre o destino dado à Lei da Ficha Limpa. Tem-se a impressão
que a ficha suja se sobrepôs a todo o esforço dos cidadãos e que, cada político
a seu modo, trata de limpar o próprio passado de corrupção e má administração.
Com unhas e dentes afiados e com os advogados mais influentes, tratam de se
manter na cadeira cativa do poder. O poder abre portas para ampliação da
riqueza e esta, por sua vez, paga o preço de um mandato que se perpetua eleição
após eleição.
Epidemia e vacina
Se é
verdade que a Marcha contra a Corrupção amplia a aurora da primavera, o faz na
medida em que brota de um inverno tenebroso. Inverno em que uma das maiores
cargas tributários do mundo alimenta a corrupção endêmica. E esta, através de
acordos e leis espúrias, retroalimenta a cobrança de impostos. Fecha-se assim
um círculo de aço sobre os ombros da população. Vira e mexe, vem à pauta da
Câmara de do Senado a recriação da famigerada CPMF. O pretexto é a saúde
pública. Mas quem diz que esta estava às mil maravilhas nos tempos dessa
extorsão pública disfarçada de imposto?
A
fome da arrecadação parece insaciável. Medida pelo impostômetro, ela desnuda a
fome das classes dominantes em manter privilégios que datam dos tempos da
Colônia e do Império. A República e a Constituição, com o regime pretensamente
democrático, não passam de um arcabouço legal para legitimar o espólio dos
grandes sobre os pequenos. Pior é que entre os três poderes da União –
Executivo, Legislativo e Judiciário – três "Cs” comandam as regras do cenário:
cumplicidade, conluio e corporativismo... Os quais deságuam no rio turvo e
turbulento de outro "C”, justamente a corrupção. Nessas águas navegam uma
grande parte dos vereadores, deputados, senadores, ministros, juízes,
representantes dos altos escalões, para não falar dos cargos majoritários.
O
projeto de poder se sobrepõe ao projeto de nação. A promiscuidade é a moeda
corrente. Salvo raras e louváveis exceções, cada político ou tecnocrata está
disposto a encobrir os pecados do companheiro para cobrir os próprios. Como
também está disposto e "fritar ou linchar” um comparsa para salvar a pele e o
cargo. Quanto ao povo, vale enquanto massa de eleitores, não enquanto cidadãos
de direitos. Daí a necessidade de manter e ampliar as políticas compensatórias
(ou migalhas), especialmente às vésperas do pleito eleitoral e sob o pano de
fundo da retórica e dos aplausos.
Há
vacina contra essa epidemia? As iniciativas elencadas na introdução dizem que
sim. O segredo está numa participação popular livre e ampliada. O que exige
criação de instrumentos, mecanismos e canais de controle por parte da população
e das instituições sociais. Controle das decisões políticas e do orçamento
correspondente. Exemplos disso são os Conselhos de Saúde, Educação, Segurança,
etc., quando escolhidos democraticamente e não manipulados pelo prefeito e seus
apaniguados. Numa palavra, formas de uma democracia crescentemente
participativa e mais direta, fortalecimento da sociedade civil.
Neste
sentido, a Lei da Ficha Limpa não deixa de ser um antídoto ao vírus da
corrupção. Mas o remédio pode ficar escondido no fundo das gavetas dos órgãos
públicos ou, pior ainda, ser manipulado e distorcido, quando não banido das
"farmácias”. Outro antídoto primaveril, sem dúvida, é a Marcha contra a
Corrupção.
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais
Fonte:Adital
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