Com inúmeras modificações e cercada por pressão de todos os
lados, a Comissão da Verdade pode sair do papel nos próximos meses.
Entretanto, para Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca
Mais, do Rio de Janeiro, caso a comissão seja posta em prática nos
moldes como se encontra, será uma "mise en scène" do governo
brasileiro. O alvo da encenação, na visão da ativista, seria a
comunidade internacional, já que o Brasil vem sofrendo pressões externas
para investigar os crimes cometidos por agentes da ditadura de 1964 a
1985.
Segundo ela, é melhor que não se faça nenhuma comissão para o
resgate da memória dos crimes da ditadura militar do que fazer da
maneira como a que está se delineando. "Somos a favor de uma Comissão da
Verdade. Mas uma comissão autônoma e independente do governo e
diferente desta que está sendo feita", ressaltou.
A Comissão de
Verdade é vista como etapa necessária para resgatar a verdade histórica
do período de repressão, com a responsabilização dos agentes que
praticaram crimes, considerados de lesa-humanidade ou hediondos, o que
os tornaria imprescritíveis. Para Cecília Coimbra, o formato proposto
pelo projeto de lei que cria a comissão não permite independência nem
autonôma suficientes aos trabalhos, o que comprometeria os objetivos.
Confira a entrevista com Cecília Coimbra:
RBA – O que se espera da Comissão da Verdade da forma como está sendo proposta?
As
entidades de direitos humanos reivindicam de diferentes governos
federais a formação de uma comissão da "verdade, memória e justiça",
como ocorreu em outros países latino-americanos que passaram por
recentes ditaduras. O Brasil está sendo o último a discutir essa
questão. Em si, isso já é um problema que a gente tem de levantar e
pensar criticamente.
Esse projeto de lei é muito pior do que foi
proposto pela primeira vez. A Comissão da Verdade continuará sendo
anti-democrática. Continuará sendo não autônoma, nem independente.
Continuará sendo totalmente vinculada ao governo federal.
Entre
países latinoamericanos que passaram por recente ditadura, o Brasil é o
mais atrasado no processo de reparação. Refiro-me a reparação em
sentido mais amplo, não simplesmente como uma questão financeira. Para
nós, reparação segue o conceito dado pela Organização das Nações Unidas (ONU),
é um processo de investigar, esclarecer, tornar público e
responsabilizar os responsáveis cometidos pelos agentes do estado num
regime de opressão e que produziram crimes de lesa humanidade.
RBA – Por que se critica a forma com que os textos da atual comissão foram decididos?
Essa
é uma comissão extremamente limitada e perversa. Ela veio no bojo do
terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), durante o governo
Lula, em dezembro de 2009 (que desencadeou reações de setores conservadores da sociedade).
Essa questão tinha aparecido por sugestão de várias entidades de
direitos humanos na Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada
em 2008.
No PNDH-3, foi colocada a questão da comissão, muito em
função das sugestões que tinham sido feitas na conferência. Entretanto, a
comissão foi colocada em uma perspectiva limitada, vista pelas
entidades sob aspecto crítico, porque se colocava como uma comissão não
autônoma e não independente do governo federal. Ao contrário, a proposta
feita era de uma comissão vinculada claramente ao governo, e somente
teria um representante da sociedade civil se fosse indicado pelas
autoridades que já fosse parte da comissão. Para nós, é um formato
extremamente antidemocrático e prejudicial à independência e ao
funcionamento da comissão.
É preferível que não haja nenhuma comissão do que essa. Da forma como está, vai ser uma mise en scène do
governo federal diante de todas as pressões internacionais por
investigação. O que estão propondo é uma brincadeira, não é uma
comissão.
RBA – E de onde veio tanta pressão para que ela fosse mudada?
Houve pressão do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes das três Forças Armadas. A pressão foi, inclusive, para o próprio PNDH, uma chantagem dessas autoridades ao Executivo. O ministro Jobim afirmou que deixaria o cargo se a comissão funcionasse como estava proposto. O governo acabou voltando atrás em relação a uma série de questões do plano, como a comunicação, a questão do aborto, dos movimentos ligados à reforma agrária, inclusive a comissão da verdade.
Houve pressão do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes das três Forças Armadas. A pressão foi, inclusive, para o próprio PNDH, uma chantagem dessas autoridades ao Executivo. O ministro Jobim afirmou que deixaria o cargo se a comissão funcionasse como estava proposto. O governo acabou voltando atrás em relação a uma série de questões do plano, como a comunicação, a questão do aborto, dos movimentos ligados à reforma agrária, inclusive a comissão da verdade.
Em maio de
2010, foi anunciada uma reformulação do PNDH-3, em função não só dessa
chantagem, mas de outras forças conservadoras que se levantaram contra o
aborto, contra a questão da terra, das comunicações.
RBA – Quais os pontos mais críticos da proposta de Comissão da Verdade em discussão?
O
retrocesso foi tão perverso que retirou a palavra "justiça" dos textos.
Ou seja, em momento nenhum vai responsalizar alguém. E eu não estou
falando a palavra punir, mas colocando responsabilização. O que a gente
busca é que os atos criminosos tornem-se públicos, que os nomes e atos
sejam conhecidos e que eles sejam responsabilizados até eticamente. Nós
não somos a Justiça.
Também se retirou a referência ao período de
ditadura cívico-militar, ou seja, o que se dizia anteriormente na
comissão era de que faria uma investigação sobre os crimes cometidos
durante o período de 1964 a 1985 e isso foi retirado da proposta.
Serão
investigadas violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988,
ou seja, violações de direitos humanos todos estão cometendo, inclusive
governos dito democráticos, do pós-ditadura. É como se o período da
ditadura desaparecesse da história do país. Para nós, manter a restrição
ao período é muito importante em relação à memória, pois as próximas
gerações não saberão que existiu nesse país uma ditadura que implantou o
terrorismo de Estado. Esse projeto de lei é muito pior do que foi
proposto pela primeira vez. Continua sendo antidemocrático, continua sem
autonomia, sem independência, vinculado ao governo federal.
RBA – O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro é contra essa comissão, que tem o aval do governo federal?
Somos
profundamente contrários a essa proposta de criação de Comissão
Nacional da Verdade por ter limitações perversas, inclusive
desrespeitando a memória do país e tentando ocultar das novas gerações o
que ocorreu efetivamente. A gente quer uma comissão da verdade que seja
autônoma e independente e possa investigar, esclarecer, publicizar
todos aqueles que cometeram crimes durante o período de 1964 e 1985.
Estamos
extremamente críticos e um tanto quanto pessimistas. Assim como na
discussão da abertura dos arquivos secretos, com na questão da Guerrilha
do Araguaia, a gente percebe que não há vontade política, porque todos
os governos civis fizeram, ou continuam fazendo, acordos políticos com
pessoas que respaldaram a ditadura. Então, há essa falta de vontade para
se esclarecer efetivamente os crimes cometidos.Por Virginia Toledo
Fonte: Brasil de Fato
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