Não se fala em outra coisa: faltam mil dias
para o início da Copa do Mundo no Brasil. A última sexta-feira [16-09-2011],
comenta-se, foi de ufanismo. O que não se comenta são os 1,4 milhão de empregos
que faltam no país. Faltam também 5,8 milhões de casas para suprir nosso
alarmante déficit habitacional. Além dos mil dias para a Copa, faltam milhares
de leitos nos hospitais públicos e vagas em todos os níveis da rede de ensino.
E em pelo menos 10% dos domicílios brasileiros, falta até mesmo água encanada.
Embora aparentemente desconexas, cada uma
dessas três problemáticas sócio-ambientais está intimamente relacionada à
recepção deste e de outros mega-eventos esportivos e descortina um padrão de
violação de direitos nas 12 cidades-sede dos jogos. A experiência das edições
anteriores demonstra isso e, no caso brasileiro, o que não falta são provas
desses impactos: a superexploração dos trabalhadores da construção civil,
submetidos a condições e regimes indecentes de empreitada nas obras dos
estádios, resultando nas atuais greves do Maracanã e Mineirão; o número crescente
de despejos e remoções forçadas por grandes empreendimentos e projetos de
infra-estrutura cujo objetivo principal é a maquiagem urbana; a recente
inserção, na proposta do novo Código Florestal, de autorização para
desmatamento de Áreas de Preservação Permanente para equipamentos da Copa do
Mundo. Exemplos de que o direito ao trabalho, o direito à moradia e ao
meio-ambiente não entram nessa aritmética da FIFA e do governo brasileiro.
Enquanto corre o cronômetro das apostas
–afinal, "time is money”, mesmo no
capitalismo financeiro– a equação do orçamento é a que não fecha. Se faltam mil
dias para a Copa, mais ainda faltam informações, transparência, participação e
controle social sobre esses gastos. O dado oficial constante do último
relatório do Tribunal de Contas da União é de que os investimentos para a Copa
do Mundo de 2014 devem totalizar R$23.358 bilhões. Desse montante, nada
expressivos 1.4% correspondem a recursos da iniciativa privada. Numa estranha
confusão entre Estado e estádio, todo o restante tem origem em órgãos públicos
como a Caixa Econômica Federal, a Infraero e o BNDES. Outras fontes de análise,
contudo, apresentam indicadores mais recheados. Segundo um estudo da Associação
Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB), parceira inclusive
do Poder Executivo, o custo global da Copa do Mundo de 2014 se aproxima de
R$112 bilhões. Trata-se de mais de R$100 mi desembolsados diariamente durante o
próximo período. Uma diária certamente abusiva para uma festa de poucos.
Abstrações como as ideias de "sentimento
cívico”, "identidade nacional” e "interesse público” são mobilizadas para
forjar consensos que, na realidade, inexistem: os interesses em jogo não são
esportivos, mas majoritariamente os de consórcios, conglomerados econômicos e
atores transnacionais que se concretizam na forma de Parcerias
Público-Privadas. Porém, o discurso pseudo-patriótico contradiz a si mesmo, na
medida em que permite a flexibilização de suas próprias leis nacionais para
atender a exigências unilaterais da FIFA. A aprovação da Lei n. 12462/2011, que institui o Regime Diferenciado
de Contratações Públicas para as obras da Copa do Mundo e a edição do Decreto
n. 7.538/2011, que cria uma Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes
Eventos no âmbito do Ministério da Justiça, fazem nitidamente parte desse
ambiente normativo de exceção.
Central nesse debate é a proposta de uma
Lei Geral da Copa, apresentada à Casa Civil pelo Ministério do Esporte, que,
entre outros temas, prevê a redução do poder do Estado sobre concessão de
vistos a estrangeiros, a demarcação de barreiras e zonas de exclusão em enormes
áreas das cidades-sede e a instalação de juizados especiais criminais dentro
dos estádios de futebol. Não bastasse isso, a União assume responsabilidades
amplas sobre danos e prejuízos causados à FIFA, tornando-se de fato avalista de
seus empreendimentos. Como essas, diversas outras regras estaduais e municipais
estão sendo sumariamente alteradas, concedendo isenções fiscais, limitando o
direito de ir e vir dos cidadãos e militarizando ferozmente o território das
cidades.
Por sua vez, a obsessão com a urgência dos
prazos tem servido para justificar a adoção de pacotes de intervenções que
desrespeitam direitos e garantias básicos, intensificando a segregação social
nas cidades brasileiras e atingindo diretamente a população em situação de rua,
grupos de feirantes e ambulantes e, em especial, os assentamentos informais e
comunidades pobres. Provisoriamente, a Articulação Popular Nacional dos
Mega-eventos já mapeou mais de 150.000 despejos já realizados ou não iminência
de sê-lo em função dessa engenharia política de mercantilização do espaço
urbano. Ou seja, centenas de remoções arbitrárias em cada um dos mil dias que
virão.
Está disparada uma contagem repressiva,
cujos efeitos se expressam na criminalização dos movimentos sociais, no aumento
da especulação imobiliária e no acirramento das desigualdades. Iniciativas como
a dos diferentes Comitês Populares da Copa visam a produzir resistências
organizadas a esse processo, a apontar alternativas e a desmistificar o modelo
neo-desenvolvimentista em
vigência. O campo popular tem à frente, sobretudo, mil dias
para se mobilizar, mil dias para denunciar os abusos, violações e
arbitrariedades que se multiplicam cotidianamente e deixam em aberto o saldo
cada vez mais negativo do suposto legado da Copa do Mundo no Brasil.
Thiago A. P. Hoshino
Assessor jurídico da Organização Terra de Direitos e integrante do Comitê Popular da Copa de Curitiba
Fonte: Adital
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