1) Contexto.
A humanidade atravessa um momento onde um bilhão de pessoas
passa fome e 1,2 bilhão não tem um copo de água limpo para beber. Fome e sede
continuam sendo os problemas fundamentais da humanidade.
Porém, para alguns cientistas, como James Lovelock, diante
do Aquecimento Global todos os outros problemas humanos são irrelevantes. Ele
tem o dom de tornar pior todas as tragédias humanas, inclusive a fome e a sede.
O Aquecimento Global tem entre suas causas a emissão de CO2 na
atmosfera pela derrubada e queima de florestas. Na contribuição perversa do
Brasil nesse problema, o desmatamento é o fator número um.
No século XIX Malthus já debatia com seus contemporâneos o
agravamento da disponibilidade mundial de alimentos diante do crescimento
populacional. A humanidade cresceria de forma geométrica, enquanto a produção
de alimentos cresceria de forma aritmética. Entretanto, a chamada revolução
verde, a base de químicos e maquinários agrícolas, conseguiu multiplicar a
produção de alimentos para além do crescimento populacional. A tese de Malthus,
portanto, caiu por terra.
Entretanto, na Cúpula Mundial do Meio Ambiente em 2002,
Johanesburgo, África do Sul, um documento da ONU trazia um novo olhar sobre a
questão, fazendo uma interessante conexão entre água (water), saúde (Health),
energia (energy), agricultura (agriculture) e biodiversidade (biodiversity).
Por isso, em inglês, o documento acabou rotulado pelas iniciais WEHAB.
A constatação do documento era crucial, isto é, a produção
mundial de alimentos tinha se multiplicado às custas da devastação dos solos,
da contaminação e uso intensivo água, da biodiversidade, além do saqueio dos
territórios das comunidades tradicionais. Apesar da produção de algumas commodities agrícolas ter se
multiplicado, multidões estavam passando fome e sede, particularmente no meio
rural. Portanto, não existia a mágica da revolução verde, a não ser que suas
conseqüências nefastas sobre o meio ambiente e as populações fossem ocultadas.
Hoje, quando se fala que temos produção agrícola para saciar toda a humanidade,
sendo o problema apenas de acesso, se oculta em que bases destrutivas essa
produção está acontecendo.
Para se estabilizar demograficamente, os estudos mais
recentes nos dizem que a humanidade deverá chegar a nove bilhões de pessoas m
2050, dois a mais que os atuais sete bilhões. Esse é outro argumento para
pressionar a produção de alimentos.
Para agravar o cenário, o documento prevê que o aumento da
população iria direcionar a produção agrícola para "áreas frágeis e de risco”,
piorando ainda mais a sustentabilidade ambiental da produção agrícola.
Para evitar essa insanidade o documento faz as seguintes
recomendações:
- redução da degradação da terra;
- melhorar a conservação, alocação e manejo da água;
- proteção da biodiversidade;
- promover o uso sustentável das florestas;
- informações sobre o impacto da mudança climática.”
2) O Texto.
É nesse contexto mundial de degradação de solos, escassez da
água, erosão da biodiversidade e florestas, crescimento populacional e o
Aquecimento Global para agravar o que já é complexo, que se coloca a proposta
de alteração do Código Florestal Brasileiro. As propostas para alteração no
Código têm como argumento fundamental o aumento da produção de alimentos.
Há tempos já se sabia que o Brasil era rico em solos, água,
sol e biodiversidade. Entretanto, há tempos também se sabe que os solos do
Cerrado, Caatinga e Amazônia são frágeis, nem sempre aptos para a agricultura.
A prova é que a pecuária e agricultura já deixaram para trás 80 milhões de
hectares de terras degradados. Hoje fala-se em recuperar essas áreas, mas a
verdade é que se prefere avançar sobre novas áreas "frágeis e de risco”, como
já advertia a ONU.
As mudanças no Código Florestal vêm nesse contexto de
quebrar as barreiras legais para o avanço da agricultura e pecuária sobre essas
áreas. As mais simbólicas são exatamente as áreas de preservação permanente,
como as matas ciliares dos rios, e morros com inclinação acima de 45º. Mas, não
é só. Também se quer ampliar a área de desmatamento na Amazônia para fins
agrícolas.
O gatilho que disparou a reação violenta dos ruralistas é a
execução das multas originadas por crimes ambientais, sobretudo o desmatamento
das áreas de preservação ambiental. Acossados pela execução das multas,
decidiram mudar as leis. Portanto, legislam em causa própria.
Mas, o argumento público é a produção de alimentos,
fartamente repetido pelos empresários do agronegócio, mas agora também por
setores dos pequenos agricultores. Nesse sentido, além de questões técnicas,
existem dimensões políticas e éticas permeando essas alterações.
No contexto geral, essa agricultura brasileira baseada na
ampliação do desmatamento, do avanço sobre as áreas frágeis e de risco, sobre
os mananciais de água, mostra-se insustentável a médio e longo prazo. Esse
modelo não tem como se sustentar – precisa de 5,2 litros de veneno por brasileiro
para produzir e já consome 70% de nossa água doce - mesmo que dê respostas
econômicas para a exportação imediata.
Esse é o nó da questão: o Brasil reprimarizou sua economia.
Agora essas commodities agrícolas
representam 36% das exportações brasileiras (www.porkworld.com.br), enquanto no
regime militar a agricultura não representava muito mais que 8%. Com a demanda
mundial por soja, etanol, carnes – e agora minérios para sustentar a demanda
chinesa -, o Brasil tem quebrado todas as leis – vide Código Florestal, Código
Minerário, etc. – para facilitar a vida do capital desses ramos econômicos,
mais que nunca poderosos do ponto de vista econômico e político. Vale recordar
que a produção de alimentos no Brasil, 70% vem da agricultura familiar, não da
empresarial (Censo Agropecuário 2006).
Dados recentíssimos afirmam que 64% da área desmatada da
Amazônia se destinaram à pecuária e apenas 5% à agricultura (FSP 02/09/2011 -
15h13). Diante dos fatos, os argumentos em favor das mudanças perdem força.
Portanto, fechar os olhos para os interesses dos grupos
envolvidos, e fechar os olhos sobre os impactos desse tipo de agricultura sobre
a natureza e as comunidades, sobretudo, fechar os olhos sobre a lógica
predadora e acumulativa dessa disputa, é decididamente tomar partido daqueles
que criaram a crise da sustentabilidade. O que está em jogo é o solapo dos bens
naturais – solos, água, biodiversidade – que sustentam a humanidade. Podemos
produzir mais agora, mas, decididamente, vamos comprometer as bases naturais para
as gerações futuras.
3) As Alterações no
Código e os Pequenos Agricultores.
Um problema de ordem prática que se coloca é que muitos
pequenos agricultores também estão entre os que depredaram suas áreas de
preservação permanente e plantaram em morros com inclinação acima de 45º. Ainda
mais, muitas das pequenas propriedades estão nesses morros. Portanto, estão
impedidos de ampliar sua área agrícola.
Primeiro, para tratar dessa questão, não é necessário fazer
as mudanças no Código Florestal que estão sendo propostas. Nesse sentido, os
pequenos estão sendo bois de piranha dos grandes interesses. Há propostas de
ocupar essas áreas com árvores frutíferas e outros manejos que tenham
finalidade econômica e ao mesmo tempo respeitar a demanda da natureza. O Código
tem base científica e, vale lembrar, que a ciência protesta contra as mudanças
exatamente porque foi posta de fora dessas decisões. Os cientistas que
participam foram convenientemente escolhidos pelos interessados na mudança do
Código.
A simples possibilidade que agricultores com até quatro
módulos sejam poupados pela mudança do Código, já fez com que áreas enormes já
estejam sendo retalhadas para se enquadrarem no novo padrão legal. Portanto,
maquia, mas não resolve o problema.
Além do mais, não se resolve um problema social criando mais
um problema ambiental. Muitas das pequenas propriedades são inviáveis não
porque respeitam as leis ambientais, mas porque são minifúndios, portanto,
tecnicamente são áreas pequenas demais para viabilizar a vida de uma família
naquele espaço. Portanto, a questão remete à concentração da terra no Brasil,
não ao problema ambiental da preservação em si mesmo. Ele só aparece porque não
há espaço outro para a expansão da atividade familiar.
4) Novas técnicas
agrícolas e preservação.
Surgiram algumas técnicas para garantir a produção e evitar,
por exemplo, a erosão dos solos. Uma delas é o chamado "plantio direto”.
Evita-se o revolvimento do solo com máquinas, praticamente plantando sobre as
palhas da cultura anterior as novas sementes. De fato, diminui em muito a
erosão. Esse tipo de técnica está sendo usado como argumento para facilitar o
desmatamento em função da agricultura extensiva.
Mas, é bom lembrar que o plantio direto não evita a força
dos ventos, muito menos tem a capacidade de fixar carbono que as florestas têm.
Além do mais, exige doses colossais de venenos. Portanto, é preciso olhar a
questão no seu conjunto.
Quanto à redução das matas ciliares, evidente que ter 12
metros é melhor que não ter nenhum metro. Mas, é preciso lembrar que só na área
de Minas Gerais, nascentes do São Francisco, mais de 1200 pequenos riachos
foram extintos, o que vai impactando diretamente na força do rio, nesse caso o
São Francisco. Quando chove há água, mas quando ele precisa de seus afluentes e
aquíferos de abastecimento – aquífero Urucúia -, então o rio mostra a
fragilidade a partir do desmatamento do Cerrado. Entre vegetação e água existe
uma conexão indissolúvel.
É importante pensar a partir dos biomas, mas é essencial
pensar a interconexão dos biomas. Por exemplo, o grande reservatório de águas
do Brasil está no Cerrado. Ele abastece as bacias do sul (Prata), Nordeste (São
Francisco) e Norte (Araguaia-Tocantis) e Amazônica. Preservar os Cerrados é
preservar grande parte das águas brasileiras.
O Aquecimento Global, pelos estudos já realizados, vai
aumentar a temperatura do semiárido, diminuir disponibilidade de solos
agrícolas em torno de 1,5% ao ano e diminuir a disponibilidade hídrica. A perda
total de solos agrícolas do semiárido pode chegar a 60% em alguns estados em 50
anos (Embrapa Semiárido). A Amazônia tende a tornar-se uma savana. Acontece que
grande parte das chuvas que caem no sul e sudeste do Brasil tem sua origem no
rio aéreo que desce da Amazônia para o sul. Sem Amazônia não há, portanto,
agricultura no sul e sudeste.
Portanto, modificar todo esse sistema complexo, no qual a
vegetação tem influência decisiva, é mais que temerário, é uma loucura. Quebrar
a legislação por interesses econômicos e corporativos, assim facilitando a quebra
das leis da natureza, é ainda mais temerário.
Portanto, um interessante posicionamento da CNBB, do ponto
de vista ético, é fundamental. O imperativo de vencer a fome a sede
imediatamente não pode comprometer o suporte natural de vencer a fome e a sede
das gerações futuras.
Outra atitude interessante da CNBB seria ouvir o mundo da
ciência, particularmente aqueles que discordam das mudanças propostas, já que
eles reclamam não estarem sendo ouvidos.
5) Novas atitudes.
Por outro lado, diante da Campanha da Fraternidade desse
ano, muitos agricultores começaram de forma espontânea ou organizada a reagir
ao desmatamento. Há agricultores na Chapada Diamantina refazendo matas
ciliares, assim como a comunidade extrativista de Serra do Ramalho na região da
Lapa, assim como um interessante trabalho de recuperação de rios da Cáritas em
Rio dos Cochos, em Minas.
Há agricultores na caatinga cultivando as árvores nativas
como a aroeira e o angico. Enfim, há outra linhagem de pensamento que não a
imediatista, mesmo no meio dos pequenos agricultores.
Enfim, como vamos produzir comida para toda a humanidade?
Essa é uma resposta em construção. Em todo caso, segundo a ONU, não será
devastando solos, consumindo água além do sustentável, erodindo a
biodiversidade que a humanidade encontrará uma saída para a fome, a sede, desta
e das futuras gerações.
É possível vencer a fome e a sede em outro modelo agrícola e
agrário, mas esse é um desafio do tamanho da humanidade.
Nesse caso, mais que nunca, cabe o princípio da precaução.
Por Roberto Malvezzi, Gogó
Adital