No
tempo em que Altamira do Pará tinha um dono, ele preferia recrutar seus
homens no nordeste. Iam de navio negreiro até São Luiz do Maranhão; em
um transporte menor até Belém do Pará; e em uma gaiola menor ainda até
Vitória do Xingu. Para Altamira, os homens faziam o percurso a pé e
crianças e mulheres no lombo de burros. Quando chegavam, já havia
morrido a metade dos homens em brigas entre si ou estropiados pelos
quase quatro dias de viagem.
Isto era no princípio de século
vinte e o homem era Coronel José Porfírio, que convocava bravos para
abrir estradas, rotas comerciais, roças e seringais. Belle Époque, é como se referem ao período alguns historiadores.
O
Consórcio Construtor Belo Monte tem muito em comum com os
empreendimentos do século passado. E os nomes dos novos Josés Porfírios
são os coronéis Andrade Guitierrez, Norberto Odebrecht, Camargo Corrêa,
Queiroz Galvão, OAS, Cetenco, Galvão Engenharia, Serveng- Civilsan,
Contern e J. Malucelli.
Os coronéis de Belo Monte também preferem recrutar seus homens no nordeste.
Em termos de beleza, o que chamam de Belo Monte também guarda semelhanças com o belo da Belle Époque. Chamam-na de bela todos os seus entusiastas remunerados: especialistas, acadêmicos da Unicamp, imprensa PiG e não-PiG, Estado.
E
tem o ministro Edison Lobão – o jornalista de milico, mestre em
interruptores, que tirou PhD em Minas e Energia só com leitura dinâmica.
Este disse, recentemente, que os trabalhadores das hidrelétricas
brasileiras são os mais bem tratados do mundo e não têm do que reclamar.
Acontece que, por aqui, as coisas não são bem assim.
Demissões e escoltas
Operários aguardavam a chegada de representante do Consórcio Construtor Belo Monte - Foto: Ruy Sposati/ Movimento Xingu Vivo |
Demissões
acontecem quase que diariamente nos canteiros de Belo Monte. As últimas
aconteceram no dia 12 de dezembro, quando mais 80 trabalhadores foram
demitidos depois de nova paralisação nos canteiros.
Eles
protestavam contra o não-cumprimento de acordos feitos anteriormente com
o Consórcio Construtor Belo Monte. “Prometeram o adiantamento do
salário para o dia 20, antes do recesso. Agora eles dizem que não vão
dar”, explica um trabalhador.
Os operários também reivindicavam
que a baixada – ou seja, o retorno para a sua cidade de origem –
ocorresse cada três meses e não a cada seis meses como atualmente. “Nós
queremos três meses, como em qualquer obra. Também queremos o salário
igual das outras obras. Belo Monte não é o que eles vendem pra gente lá
fora não”, diz um operário.
As demissões aconteceram mesmo com um
acordo negociado no dia 25 de novembro, que garantia três meses de
estabilidade para todos os funcionários da obra. Entre os demitidos,
havia ao menos dois representantes da comissão que negociou a pauta de
reivindicações.
Também a Polícia Militar foi chamada para fazer os
afastamentos. “Quando chegamos no RH, a PM já estava lá esperando a
gente. Chegaram lá com a lista, caçando a gente no canteiro. Teve
bate-boca, porque ninguém esperava ser demitido, né? Aí a polícia
apontou arma na nossa cara, tentou algemar um colega nosso”, contaram os
demitidos. “Fomos humilhados que nem bandido, que nem vagabundo. Por
quê?”
O histórico da luta em Altamira
Os
atritos entre trabalhadores e a Consórcio Construtor Belo Monte se
intensificaram desde o dia 11 de novembro. Quatro trabalhadores foram
demitidos por se recusarem a realizar um trabalho que, além de estar
fora de suas funções, era humanamente impossível de ser feito: retirar
pranchões de madeira que pesam toneladas de um caminhão, serviço de
guindaste. Um clima de revolta se instalou entre os operários, que, após
o expediente de trabalho – era sexta-feira –, ameaçaram incendiar o
canteiro caso as demissões não fossem revertidas.
Por sugestão da
própria diretoria do consórcio, foi eleita uma comissão de quatro
representantes dos trabalhadores, apontados em conjunto com os diretores
do consórcio, para conduzir as rodadas de negociação. “Eles [os
diretores] nos escolheram justamente porque a gente conseguiu acalmar a
situação e abrir diálogo com a empresa”, explicou o pedreiro José
Antônio Cardoso, um dos negociadores. O Consórcio Construtor Belo Monte
(CCBM), propôs, então, uma reunião no sábado, 12 de novembro, com a
participação do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção
Pesada do Pará (Sintrapav-PA).
Na manhã daquele sábado, os
trabalhadores realizaram uma paralisação para pressionar a companhia e
se reunir em assembleia para definir a pauta que seria entregue na
negociação com a empresa, compondo uma lista com 16 reivindicações.
Entre os pontos, destacavam-se a exigência do pagamento de horas-extras
aos sábados, o cumprimento do acordo sobre as folgas de 90 dias, aumento
do vale-alimentação e a instalação de telefones no canteiro.
Os
operários também pediam o aumento do contingente de fiscalização de
seguranças do trabalho, que garantiria a coibição de desvio de função.
“Lá tem cinco seguranças, pra umas 20 frentes de trabalho. Isso é um
problema muito sério, que no próprio treinamento da empresa eles
disseram que nós precisamos ajudar a evitar. E foi aí que todo esse
problema começou”, explica o carpinteiro Walter Almeida, também do grupo
negociador.
Durante o encontro, a diretoria da empresa se
comprometeu a encaminhar as propostas à superintendência de Belo Monte e
não retaliar nenhum dos trabalhadores envolvidos nas ações e nas
negociações. Assim, então a greve foi suspensa.
Na manhã de
quarta-feira, 16 de novembro, mais de 300 trabalhadores que vivem no
canteiro de Belo Monte foram acordados por quarenta policiais – e por
uma lista barulhenta de 138 demitidos. Destes, 137 foram tirados ainda
bocejando das “carpas” – alojamentos de tecido sintético branco -,
receberam a rescisão do contrato de trabalho em dinheiro, foram
colocados em quatro ônibus pela polícia e retirados do local de onde
foram mandados direto para o Maranhão. O homem de número 138 foi
agrupado com outros 3. Eram os quatro que faziam parte da comissão de
negociação da greve.
Os quatro representantes dos trabalhadores
receberam tratamento especial. Para evitar que buscassem em Altamira
órgãos para denunciar os abusos, como o Ministério Público do Trabalho e
a Defensoria Pública, além da imprensa, eles foram escoltados pela
polícia até Anapu, município a uma hora e meia do canteiro em terra
batida, onde pegariam um ônibus para Marabá e, de lá, outro para
Estreito (MA), seu município de origem, com a carteira de trabalho suja
pelos 11 dias trabalhados na barragem. “Nós quatro fomos escolhidos pela
empresa para ajudarmos nas negociações e evitar conflitos. E
simplesmente fomos demitidos. A empresa usou a gente e jogou fora”,
lamentou Walter.
A escolta foi realizada pela Rondas
Ostensivas Táticas Metropolitanas (ROTAM), polícia de elite vinda de
Belém e responsável por prevenir e reprimir situações de criminalidade
violenta. De acordo com os trabalhadores, eles foram vigiados de perto e
acompanhados por policiais até quando iam ao banheiro. Saíram vaiados
do canteiro, pois, segundo eles, a chefia havia ventilado para os outros
trabalhadores que a responsabilidade pelas demissões era deles.
Transamazônica
O
clima continuou quente nos canteiros. O prazo original do dia 24 de
novembro, data prometida pelo CCBM para entregar uma resposta aos
trabalhadores de suas 16 reivindicações que não foram cumpridas,
esgotou-se. E foi assim que, no dia seguinte, cerca de dois mil
trabalhadores cruzaram novamente os braços no canteiro uma greve no
principal canteiro da obra Belo Monte. Foi a segunda paralisação no mês
de novembro.
“A única resposta que tivemos foi a demissão dos
maranhenses”, comenta M., um dos trabalhadores. “E pra piorar, tivemos a
notícia de que nem recesso de natal nós teremos”, explica. Segundo os
operários, durante o processo de contratação, a empresa havia acordado a
realizar não só a liberação no final do ano, como também permitir a
“baixada” – retorno dos trabalhadores a suas casas de origem – de três
em três meses. No entanto, ao chegarem no canteiro, o CCBM os informou
que a volta só aconteceria de seis em seis meses. Afora isso, desvios de
função, assédio moral, más condições de trabalho e transporte, comida
estragada e não-pagamento de horas extras estão entre as reclamações
trabalhistas.
Insalubridade
“A
água estava cinza”, relata N., “tanto que agora eles estão enchendo com
galão de água mineral”. Segundo os trabalhadores, mais de 200 pessoas
passaram mal por conta da água e do almoço estragado. “Também, eles
colocam algum tipo de fermento ou salitre, pra gente comer pouco e ficar
estufado”, conta J.
Não foi possível para a reportagem entrar
na área dos alojamentos onde, segundo os trabalhadores, haviam pessoas
doentes. Tanto imprensa quanto operários foram ameaçados: “quem entrar
lá sofrerá as consequências”, disse um homem sem identificação.
“Foi
difícil chamar vocês [da imprensa], mas dessa vez nós conseguimos”,
explica A. “Na hora em que fomos usar o telefone que fica na área de
lazer, as linhas foram cortadas. Conseguimos ir ao Santo Antônio
[comunidade a 500 metros da obra, onde há um orelhão] e ligar pra
vocês”.
Sob pressão, a empresa se comprometeu a receber os
trabalhadores e a pauta de reivindicações na segunda-feira, dia 28. O
Sintrapav garantiu que acompanharia o encontro.
Fechando caminhos
O
Consórcio, que havia se comprometido a responder à pauta de
reivindicações dos operários na manhã do dia 28, não apareceu até o
final da jornada de trabalho para negociar. Ao contrário, a empresa
evacuou o canteiro de todo e qualquer rastro de chefia ou de poder
decisório. Apenas os trabalhadores permaneceram.No terceiro dia de greve
os trabalhadores continuavam de braços cruzados.
Caminhão do Exército que fazia uma missão a pedido de Dilma atravessa bloqueio da Transamazônica - Foto: Ruy Sposati/ Movimento Xingu Vivo |
Diferentemente
do que ocorreu na primeira paralisação do canteiro desta vez os
trabalhadores não montaram uma comissão de negociação. “Da última vez
que apontamos negociadores, tanto a comissão quanto os trabalhadores
envolvidos na pauta foram todos demitidos”, explica um operário. “Agora,
só conversamos em assembléia”.“Estão tentando nos ganhar pelo cansaço”,
comentou um pedreiro da obra. Em protesto, os funcionários trancaram a
rodovia Transamazônica, na altura do quilômetro 50, em Vitória do Xingu,
Pará.
Durante o “trancaço” da rodovia, os trabalhadores
serviram almoço para os motoristas e passageiros dos ônibus do CCBM. O
clima foi bastante tranquilo. A Polícia Rodoviária Federal (PRF)
apareceu para negociar o fim do bloqueio da estrada e se propôs a ir a
Altamira trazer diretores da empresa para apresentar uma posição do
consórcio aos grevistas. De uma colina próxima, era possível avistar uma
guarnição da Rotam, a polícia de elite paraense, acompanhada de dois
encarregados do Consórcio. Helicópteros sobrevoavam a área do canteiro. A
direção e chefias do canteiro, no entanto, não estavam presentes desde o
início do dia. A imprensa local não apareceu.
Às cinco horas
da tarde, a polícia retornou, mas no lugar do CCBM trouxeram dirigentes
do Sintrapav vindos de Belém. Os sindicalistas conversaram rapidamente
com os trabalhadores.
Segundo um diretor do sindicato, não
houve reunião entre eles e a empresa, como estava previsto. O sindicato
mediaria uma rodada de negociação naquela terça, às 14 horas, na
Delegacia Regional do Trabalho (DRT) em Altamira, com a empresa e
comissões que o sindicato organizaria em todos os canteiros de obras,
para apresentar as reivindicações e negociar o acordo coletivo de
trabalho. Alguns trabalhadores disseram não reconhecer o sindicato como
entidade negociadora da categoria. O que não significou muita coisa, em
termos práticos.
O fim da greve
Se
parecia perfeito o roteiro clássico de “abafa-o-caso do petardo
trabalhista”, com silêncio midiático e tudo, a coisa ficou realmente
impecável quando chegaram governo e sindicato para, definitivamente,
interferir no processo de reivindicação dos barrageiros. E foi isto o
que aconteceu: uma greve grande (e que crescia), abafada pela imprensa,
negada pelo Consórcio e finalizada com ajuda do sindicato e do governo
federal.
O panorama da greve nos canteiros de obra de Belo Monte
ficou confuso. Segundo alguns trabalhadores, cerca de 800 operários
voltaram ao trabalho na quarta, 30 de novembro, no canteiro Belo Monte.
Outros diziam que ninguém havia embarcado.
Trabalhadores esperavam maior cobertura da imprensa local e nacional - Foto: Ruy Sposati/ Movimento Xingu Vivo |
A
confusão é fruto de uma reunião que ocorreu na terça-feira, 29. No
final da tarde daquele dia, um grupo de trabalhadores organizado pelo
Sintrapav reuniu- se com o Consórcio Construtor Belo Monte na
Superintendência Regional do Trabalho, em Altamira, para negociar a
pauta de reivindicações dos operários.
Na reunião, que deveria ter
acontecido na segunda-feira, 28, a empresa exigiu que a greve fosse
suspensa para que as negociações pudessem ser feitas. Apenas a pauta foi
protocolada pelo Delegado Regional do Trabalho. Um assessor da
Secretaria de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da
República participou da negociação.
O Sintrapav é dirigido pela
Força Sindical – grupo político do agora ex-Ministro do Trabalho Carlos
Lupi (PDT). De acordo com os operários, o sindicato “costurou” o
protocolo com o Consórcio e passou a tarde tentando convencer os
grevistas de que a paralisação seria ilegal e ilegítima, e que deveria
ser suspensa para permitir que a pauta fosse negociada.
Ao final
da reunião, da qual participaram cinco trabalhadores, três dirigentes
do Sintrapav, representantes do Consórcio, o delegado regional do
trabalho e o assessor da Secretaria de Articulação Social da Secretaria
Geral da Presidência, Avelino Ganzer, o sindicato informou que ficou
acordada a suspensão da greve e que novas ações poderiam surgir a partir
do teor da resposta do empreendimento.
No dia seguinte, uma nova
rodada, agora tratando das questões econômicas, aconteceu. A greve foi
suspensa, embora muitos trabalhadores ainda não tivessem tomado
conhecimento disso. Os trabalhadores saíram da greve com a promessa de
serem atendidas suas reivindicações, com exceção da “baixada”. No
entanto, todos ganharam recesso de final de ano de 14 dias. “Vamos
curtir o natal e o ano novo e quando voltarmos a gente vai ver a
baixada”, disse um trabalhador na fila do banco para receber o salário e
a parcela do décimo-terceiro.
Por Ruy Sposati
Fonte: Brasil de Fato
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