A maior propriedade rural do mundo deixou de existir
legalmente na semana passada. O juiz Hugo Gama Filho, da 9ª vara da justiça
federal de Belém, mandou cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá, que
consta dos assentamentos do cartório de Altamira, no Pará. O imóvel foi
inscrito nos livros de propriedade como tendo nada menos do que 4,7 milhões de
hectares.
Seu suposto proprietário podia se considerar dono da 23ª
maior unidade federativa do Brasil, com tamanho superior ao dos Estados do Rio
de Janeiro, Alagoas, Sergipe e do Distrito Federal. Suas pretensões poderiam
ainda exceder essas dimensões. Através de outros imóveis, pretendia alcançar
uma área de 7 milhões de hectares, duas vezes e meia o tamanho da Bélgica, país
onde vivem mais de 10 milhões de habitantes.
Como uma pessoa – física ou jurídica – consegue se
apresentar como detentor de uma área dessas proporções e se manter nessa
condição por tanto tempo, como aconteceu no caso da Fazenda Curuá?
Responder a esta pergunta de maneira satisfatória e eficaz
pode contribuir para fortalecer o primado da lei nos "grotões” do país, as
distantes e geralmente abandonadas fronteiras nacionais. De forma inversa,
manter tal anomalia significa perpetuar o domínio da violência e do respeito às
regras da vida coletiva e ao superior interesse público.
Em primeiro lugar porque o Estatuto da Terra, editado pelo
primeiro governo militar pós-1964, o do marechal Castelo Branco, continua em
vigor. Esse código agrário sobreviveu à Constituição de 1988 e se revelou superior
em confronto com as regras da Carta Magna. O estatuto, com seu propósito de
modernizar o campo brasileiro (mesmo que de forma autoritária, à semelhança do
que fez o general MacArthur com o Japão ainda semi-feudal, derrotado pelos
americanos na Segunda Guerra Mundial), proíbe a constituição de propriedade
rural com área acima de 72 mil hectares (ou 600 vezes o maior módulo rural, o
destinado ao reflorestamento, com 120 hectares).
A Fazenda Curuá foi registrada com quase 60 vezes o limite
legal. Por que o cartorário legalizou a matrícula do imóvel com sua fé pública,
ele que é serventuário de justiça, sujeito à polêmica (e questionada pelo
Conselho Nacional de Justiça da ministra Eliana Calmon) Corregedoria de Justiça
do Estado?
A apropriação ilegal de terras públicas, fenômeno a que se
dá a qualificação de grilagem, é simples, embora de aparência complexa para o
não iniciado nos seus meandros. Ainda mais porque lendas são criadas em torno
da artimanha dos espertos e passam a ser apresentadas como verdade.
Muita gente acredita que a expressão grilagem se deve à
prática dos fraudadores de colocar papéis para envelhecer artificialmente em
gavetas com grilos.
A verdade é menos engenhosa. A origem é romana e diz
respeito ao fato de que a terra usurpada serve para a especulação imobiliária e
a formação de latifúndios improdutivos. Tanta terra não cultivada acaba
servindo de pasto para grilos. Uma maneira de estigmatizar o roubo de terras
públicas de forma popularizada.
O espantoso, no caso da Fazenda Curuá, é que o golpe tenha
se mantido por tantos anos. A ação de cancelamento foi proposta em 1996 pelo
Instituto de Terras do Pará. Apesar de ter provado que nenhum título de
propriedade havia na origem do imóvel, a justiça estadual manteve o registro
incólume, decidindo sempre contra o órgão público. Até que o Ministério Público
Federal e outros órgãos da União conseguiram desaforar o processo para a
justiça federal, que, afinal, reconheceu a ilegalidade da propriedade e
cancelou o registro.
Essa tramitação acidentada e pedregosa seria evitado se a
justiça do Pará tivesse realmente examinado as provas dos autos. Neles está
demonstrado que o uso das terras no rico vale do Xingu, onde está sendo
construída a hidrelétrica de Belo Monte e agem com sofreguidão madeireiros e
fazendeiros, começou em 1924.
Moradores da região foram autorizados a explorar
seringueiras e castanheiras localizadas em terras públicas, através de
concessões com tempo determinado de vigência e para fim específico. Exaurida a
atividade extrativa vegetal, a área deixou de ter uso, mas algumas pessoas
decidiram inscrevê-la em seu nome. Como os cartórios não se preocupavam com o
rigor da iniciativa, até mesmo dívidas em jogo deram causa à transmissão da
inexistente propriedade de um detentor para outro, formando cadeias
sucessórias.
A lesão ao patrimônio público por causa dessas práticas
ilícitas permaneceu latente até que uma das maiores empreiteiras do país
colocou os olhos nesse mundo de águas, florestas, solos e animais. A C. R.
Almeida, criada no Paraná por um polêmico engenheiro, Cecílio do Rego Almeida,
que nasceu no próprio Pará, comprou uma firma de Altamira por preço vil (sem
sequer pagá-lo por inteiro).
No ativo da firma estavam as terras cobiçadas. Não
conseguindo regularizá-las pela via legal, por ser impossível, o empreiteiro
decidiu se apossar da área à base do fato consumado e passando por cima de quem
se colocasse no seu caminho. Montou uma pequena base no local, contratou
seguranças, seduziu os índios vizinhos e fez uso da máquina pública que se
amoldou à sua vontade. Os que resistiram à grilagem foram levados às barras dos
tribunais, que sempre decidiram em favor do grileiro.
Os magistrados da justiça estadual não se sensibilizaram
sequer pela publicação do Livro Branco da Grilagem, editado pelo Ministério da
Reforma e do Desenvolvimento Agrário, que não deixava dúvida sobre a fraude
praticada. Nem pelos resultados das comissões parlamentares de inquérito
instauradas em Belém e em Brasília. Ou pelas seguidas manifestações de todas as
instâncias do poder público, estadual e federal. Enquanto exerceu sua
jurisdição sobre o caso, a justiça do Pará ficou ao lado do grileiro e de seus
herdeiros, quando ele morreu, em 2008.
Foi preciso que o processo chegasse à justiça federal para,
finalmente, 15 anos depois da propositura da ação pelo Iterpa, secundado por
outros agentes públicos, a situação se invertesse. Não é ainda uma decisão
definitiva. Os herdeiros da C. R. Almeida deverão recorrer. Mas já sem o
registro cartorial que lhes permitia manipular terras como se fossem os donos
do 22º maior Estado brasileiro.
Quem sabe, a partir de agora, a intensa grilagem, um dos
males que assola a Amazônia, não possa refluir?
Por Lúcio Flávio Pinto
Fonte:Adital
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