Com seu atual Estado ou dividido por mais dois, o Pará não
sairá melhor do plebiscito do dia 11, qualquer que venha a ser o resultado da
votação. Mas sairá dividido e suas partes deverão aumentar a rivalidade e o
antagonismo. Esse resultado exigirá o que continua a faltar ao Estado:
capacidade para tirar proveito das suas riquezas.
O eleitor paraense votará no dia 11 mais por impulso
emocional ou político do que por razões técnicas. Como se temia, o debate sobre
o tema da redivisão do Estado, de curta duração, extrapolou rapidamente da
análise dos argumentos para uma polarização tipicamente eleitoral, passional e
agressiva. Seria a confirmação de que, por trás da questão de criar ou não os
Estados de Tapajós e Carajás onde está hoje apenas o Pará, há fortes interesses
políticos e empresariais.
Se o eleitor irá se sentar diante da urna eletrônica sem uma
convicção capaz de tranquilizar sua consciência sobre o acerto da grave decisão
que irá tomar, como se levantará o eleitor médio depois de ter votado? Se
chegar à conclusão de que errou, não poderá mais corrigir o erro na eleição
seguinte, como faria se estivesse elegendo uma pessoa para ocupar cargo público
sujeito à escolha do povo.
O que fará no dia 11 será decidir sobre o tamanho de um
Estado: se continuará o mesmo que é há quase 70 anos (desde 1943) ou se o
reduzirá para 17% do que é atualmente. É uma experiência absolutamente nova na
vida pública brasileira: o cidadão ser convocado para uma eleição da qual
poderá resultar a constituição de duas novas unidades federativas.
Os processos anteriores foram impostos de cima para baixo,
sendo o mais traumático o que foi desdobrado da transferência da capital
federal para Brasília. O Rio de Janeiro levou vários anos tateando em busca de
uma nova ordem territorial adequada, o que certamente influiu de forma decisiva
sobre o esvaziamento da antiga Belacap e, no vácuo de função, favorecer o
crescimento de organizações criminosas responsáveis, ao menos em parte, por uma
autêntica guerra civil não declarada.
Na Amazônia, à exceção de Rondônia, a elevação à condição de
Estados dos territórios federais criados em 1943 foi um ato artificial, pelo
qual até hoje o tesouro nacional paga a sua cota e a população local o ônus
dessa centralização, submetida a oligarquias familiares (os Jucá e os Pinto de
Souza em Roraima, Sarney e os Capiberibe no Amapá), numa reedição e adaptação
da partilha dos antigos territórios entre as três forças armadas.
Não serve de bom parâmetro a comparação do que acontece no
Pará ao que se consumou em Mato Grosso e Goiás. Os dois Estados espontaneamente
cederam parte dos seus territórios, certos de que era a melhor solução para
todas as partes, por admitirem não poder administrá-los (ou porque a extensão
emancipada servia-lhes de contrapeso). O Pará está profundamente dividido neste
momento por falta desse consenso.
Pode ser que os habitantes do Estado remanescente estejam
equivocados ao imaginar que a perda de 83% do seu território lhes comprometerá
de vez o futuro, por ser uma perda enorme e irreparável. Pode ser que a perda
se transforme em libertação, como argumentam os separatistas, já na condição
agressiva de militantes da secessão no Pará. Mas eles podem estar iludindo não
só os paraenses, agora seus oponentes, como também os próprios companheiros de
causa, apontando-lhes a criação dos dois novos Estados como a tábua da
salvação.
Pode ser que no dia seguinte, qualquer que venha a ser o
resultado do plebiscito, tudo tenha mudado para nada mudar, a não ser pela
incorporação do ânimo bélico da campanha, que poderá se tornar perene,
transformando diferenças em incompatibilidades. A questão espacial é relevante
num Estado com as dimensões do Pará, mas ela não tem a capacidade de mudar nada
por si mesma. É como a tecnologia: pode servir ao bem tanto quanto ao mal.
Depende de quem a usa e com qual propósito.
Depois de anos de luta de um grupamento de paraenses para
conseguir a aprovação do Congresso para o plebiscito, é de surpreender que os
autores dos projetos de criação dos Estados de Carajás sejam de outros Estados.
Já não é de surpreender que esses projetos, livres da sua vinculação à história
do Pará, tenham se hipertrofiado e distorcido tanto que deixaram ao Estado remanescente
um território desproporcionalmente inferior ao dos dois Estados, que eram seus;
ou que o Tapajós tenha anexado o Xingu, algo antes nunca sequer imaginado (não
da perspectiva sociocultural, deixada de lado por quem tem todos os olhos
fixados no projeto da usina de Belo Monte); ou, como Carajás, engolido mais
municípios e ido mais ao norte para incorporar a hidrelétrica de Tucuruí, por
uma diretriz oportunista que desdenhou os fundamentos técnicos da identidade
cultural e geográfica.
Com a capital na cidade de Santarém, o habitante do Estado
do Tapajós poderá ser mais bem assistido pelo seu governo do que tem sido pelo
de Belém. Tudo muda de figura, porém, se o novo governador for do mesmo padrão
do anterior. Pelas lideranças ativas na região, a expectativa é de que os
homens terão o mesmo figurino. Talvez um segundo governante do novo Estado
tenha potencial melhor.
Entretanto, até lá o poder público terá que fazer
investimento em torno de um bilhão de reais para se instalar, com todos os seus
órgãos vitais e seus inúmeros penduricalhos ociosos ou inúteis, como os da
atual capital. Sem receita própria suficiente para suportar esse custo e sem
que a União possa supri-lo à altura, o novo Estado terá que se endividar,
primeiro passo para seguir o roteiro de vícios que engendrou a ânsia pela
autonomia decisória.
O percurso que Carajás seguirá no caso de vitória no
plebiscito não irá diferir substancialmente do de Santarém. O melhor desempenho
será uma questão apenas de grau, embora as vantagens de dispor de maior receita
e mais recursos seja mais do que contrabalançada pela gravidade dos problemas
que irá enfrentar (e irá gerar, sem maior controle).
As três campanhas se digladiaram por dias em torno de uma
questão de transcendental importância para o eleitor: saber se a divisão
empobrecerá mais ou enriquecerá mais cada um dos três Estados. O Supremo
Tribunal Federal já definiu como inconstitucional a atual forma de compensação
dos Estados adotada desde 1989 pela União, pelo não recolhimento da parte que
lhes cabe no Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados.
Esse fundo, que alcançou 39 bilhões de reais no ano passado
(1,9% do PIB nacional), é partilhado conforme a população e a renda per capita.
Como o seu propósito é combater os desníveis regionais, São Paulo, o Estado
mais rico da federação, só recebe 1% do total, por dispor de receita própria
suficiente para dar conta das suas despesas, sem precisar do governo federal.
Logo, não é por causa do FPE que as lideranças paulistas combatem a criação de
novos Estados: é pela perda de poder político, de capacidade decisória.
Até o final de 2012 deverão ser criados novos critérios para
a gestão do FPE, mas de uma realidade o fundo não poderá escapar, quaisquer que
venham a ser os critérios de partilha: o bolo de recursos não crescerá com a
criação de novos Estados; o que haverá será a redistribuição do mesmo dinheiro
por mais Estados. Por isso, cada um receberá menos para que Carajás e Tapajós,
por exemplo, tenham a sua parte. Logo, o Pará perderá receita, como perderão
todos os demais.
Essa perda conjunta levou o jurista Dalmo de Abreu Dallari a
argüir junto ao STF que a "população diretamente interessada”, referida pela
constituição, tinha que ser toda a população brasileira. No primeiro pronunciamento
foi afastada a hipótese dos separatistas de que só os moradores das áreas a
serem emancipadas deviam votar. Também foi eliminado o entendimento do advogado
paulista. A redivisão do bolo por mais participantes não altera o total para
mais ou para menos. A eventual perda individual de receita faz parte do esquema
federativo em que a nação foi organizada. O absurdo seria se a população do
Pará aprovasse o desmembramento, enquanto o restante dos brasileiros o negasse.
Seria a quebra da autonomia federativa das unidades políticas do país.
Como a previsão de receita do Tapajós é modesta, o possível
Estado ficará extremamente dependente das transferências compulsórias da União.
Não sendo elas suficientes, terá que recorrer a operações de crédito. O risco
da insolvência não está de todo afastado do horizonte de Carajás. Por ser um
Estado francamente minerador, o recolhimento de ICMS continuará a ser
insignificante. Já 65% das compensações financeiras (os royalties) se
destinarão aos municípios produtores, agravando o desequilíbrio que já existe
entre eles (sem falar na ausência de critérios na aplicação do dinheiro da
compensação).
Uma série de graves problemas revela que a criação de novas
unidades administrativas num espaço federativo de grandes dimensões não será a
solução que se aponta se não houver uma mudança profunda na gestão do espaço,
independentemente de ele ser extenso ou curto. Logo se poderá constatar que os
bilhões de reais demandados por atividade-meio nova significará um desperdício
de dinheiro precioso de sua aplicação em atividade-fim. Tapajós e Carajás
seriam mais bem servidos com esses investimentos do que se tornando Estados.
Mas como conseguir que os recursos finalmente cheguem a
pontos extremos (ou nem tanto assim: áreas da capital continuam tão abandonadas
quanto Castelo dos Sonhos, a quase 1.500 quilômetros de distância) se falta
legitimidade à elite dominante em Belém, se os líderes e habitantes
interioranos não acreditam nela?
Do meu ponto de vista, a resposta a essas questões cruciais
depende de uma mudança ainda mais profunda no modelo de desenvolvimento da
Amazônia do que a partilha territorial. Acho que os "grandes projetos”, além de
serem bombas de sucção de riquezas, mesmo que por efeito residual da grandeza
de sua atividade, engendram distorções locais graves.
Ao lado do município minerador, que tem receita substantiva,
há municípios pobres, aos quais não chegam os farelos das compensações
financeiras pela extração e exaustão do recurso natural. Já os desajustes e
desequilíbrios provocados pelo inchaço do município produtor extrapolam os
benefícios e a capacidade de gestão do poder público local. O que vai além-mar
é o filé. O que fica são as sobras do banquete.
Não há forma de mudar essas contradições e paradoxos? Acho
que há: mudando o eixo do processo. Ao invés de novos Estados, unidade
federativa de outro tipo: a região administrativa. Essa região corresponderia à
área da bacia hidrográfica dentro do território estadual. Os limites seguiriam
as drenagens do rio principal. Definida a área, o Estado e a União financiaram
os estudos e levantamentos sobre o uso do solo e as características do seu
aproveitamento.
Uma lei conteria as diretrizes do plano de desenvolvimento
do vale, votada na Assembléia Legislativa e no Congresso Nacional, com vigência
de 20 ou 30 anos. Uma agência seria criada para executar a lei, formada por
representantes do poder público, da sociedade e das universidades públicas. Sua
estrutura seria singela, do tipo do grupo executivo, com pessoal de excelência,
seguindo carreira, admitido por concurso. A agência seria acompanhada por um
conselho deliberativo, com representantes dos três poderes e da sociedade, em
forma paritária.
O fundo receberia parte das compensações financeiras, do
imposto gerado no local e das aplicações do Estado e da União, criando também
suas próprias fontes de renda. Nada nem parecido com a estrutura de um novo
Estado nem assemelhado às engrenagens viciadas da maioria das administrações
públicas. Tudo por mérito e em busca da excelência. Prioridade total à
atividade-fim.
Sonho e utopia? Sim, mas não fantasia: recolocaria o eixo da
ação na região na sua história, cultura e natureza. Mesmo porque, numa época de
descrença nos políticos e administradores públicos, criar novos nichos para
eles é tapar os ouvidos para o ensurdecedor barulho das ruas. Barulho que
continuará intenso no dia do plebiscito. E depois.
Por Lúcio Flávio Pinto
Fonte: Adital
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