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"Se você treme de indignação perante uma injustiça no mundo, então somos companheiros". (Che Guevara)

sábado, 29 de setembro de 2012

Maomé também quer rir


Nas últimas semanas, a palavra “intolerância” tem descrito os protestos no mundo islâmico, que acabaram resultando em pessoas mortas e feridas. Iniciados por um trailer de um filme chamado “A inocência dos mulçumanos”, que satiriza o profeta Maomé, e seguido por diversas caricaturas irônicas do profeta em uma revista francesa chamada Charlie Hébdo, os episódios mostram a intolerância com que nossa sociedade trata uma cultura que sequer conhece propriamente, disfarçando o preconceito sob o manto de um humor supostamente inofensivo.
O editor da revista Charlie Hébdo, conhecido como Charb, alega que resolveu lançar uma edição polêmica com o objetivo de defender a liberdade de expressão. “Se começarmos a nos questionar se temos ou não o direito de desenhar Maomé, se é perigoso ou não fazê-lo, a questão seguinte certamente será: ‘podemos representar os muçulmanos em nosso jornal?’ etc. E, no final, não poderemos mais fazer representação de nada. Assim, o punhado de extremistas que está se agitando no mundo inteiro terá vencido”. Vale notar que o jornal, que costuma vender 45 mil exemplares, já vendeu 75 mil edições, e já prepara mais 200 mil para levar às bancas.
A fala do editor levanta um tema central: a forma como os muçulmanos são representados na mídia e no imaginário popular. O muçulmano que a Charlie Hébdo quer representar não passa de uma imagem, um estereótipo de um ser irracional, cego pela fé e violento. A revista não se esforça, com essa atitude, em retratar os muçulmanos como pessoas de verdade, e fazendo isso, ela cai na armadilha de se tornar exatamente o que critica: irracional ao desumanizar um povo inteiro, cega para tentar compreender a realidade, e violenta ao atacar superficialmente o que desconhece.
Nesse sentido, o humor tem um papel importante em mascarar o discurso reacionário da publicação, transformando-o em algo progressista. Sob o manto de uma suposta “neutralidade do riso”, a revista diz defender a liberdade de expressão; só porque é possível ironizar o “radicalismo islâmico”, não quer dizer que se deva fazer isso em um momento no qual protestos irrompem justamente por causa disso. O histórico anti-islã da publicação remonta à 2006, quando ela reproduziu caricaturas de Maomé publicadas em um jornal dinamarquês de extrema-direita, chamado Jyllands-Posten.
Em 2011, quando a redação da Charlie Hébdo foi incendiada após o anúncio de que a revista publicaria caricaturas anti-islâmicas, a publicação disse em editorial que “compreendemos perfeitamente que um muçulmano não queira ver desenhos de seu profeta, nem comer porco, muito menos rir dos desenhos de ‘Charlie’. Mas há outros que não são muçulmanos. Portanto, temos direito de desenhar Maomé, comer porco ou rirmos de qualquer coisa. Também não somos cristãos, judeus ou budistas”.
A ideia de que é possível fazer piadas de mau gosto e ofensivas sobre certos grupos é algo extremamente comum na nossa sociedade, pois a noção de que “uma piada é apenas para fazer rir, não é algo sério, e quem se ofende com isso é intolerante” é muito forte; no entanto, esse tipo de discurso apenas disfarça o sentido político e ideológico de um humor reacionário, que não tem o propósito de criticar a estrutura social, apenas ofender um grupo para com isso vender mais exemplares e parecer mais libertário do que realmente é.
Ao dizer que o humor não pode ser criticado ou questionado por ser apenas algo que faz rir, este se torna algo sagrado, e seus religiosos defensores, muitas vezes extremistas desqualificam qualquer argumento contrário. Essa visão do humor também dá liberdade aos seus interlocutores de falarem o que quiserem, sem que isto tenha consequências. A própria Charlie Hébdo, ao ser processada em 2006 pelas caricaturas anti-islã, foi absolvida em primeira e segunda instâncias.    
O que o episódio da Charlie Hébdo mostra é que o humor nunca é algo neutro; pelo contrário, é uma forma de transmissão de ideias poderosíssima, que pode tanto mostrar a hipocrisia da sociedade em relação a determinados temas, quebrando noções estabelecidas da forma mais irônica possível, como pode reforçar preconceitos já existentes.
No Brasil, por exemplo, o jornal O Pasquim, engajado na denúncia dos abusos do regime militar, foi exemplo do humor emancipador, ao passo que os quadros do programa Zorra Total, que se utilizam de personagens pobres, negros e homossexuais para basear suas piadas, muitas vezes ofendendo os grupos retratados, é um exemplo do humor que apenas reforça preconceitos.
Com isso não se quer dizer que não se pode fazer piadas com esses grupos, ou no caso, com os muçulmanos. O problema reside nessa concepção de humor “politicamente incorreto”, que é polêmico apenas pelo fato de ser polêmico, e nos humoristas, que não conseguem enxergar a sua atividade como uma forma de transmissão de ideias.
Um humorista que entende o papel de sua atividade pode, por exemplo, usar um personagem homossexual para criticar o preconceito e a violência pela qual a população LGBT está sujeita, assim como pode se utilizar de um muçulmano para mostrar a hipocrisia da nossa sociedade em rotular todos os islâmicos como terroristas, violentos e fanáticos.
Se a Charlie Hébdo quisesse ser de fato uma revista polêmica em relação a este tema, fazendo um humor de qualidade, ela usaria de um personagem muçulmano, vivendo uma vida comum, para mostrar o quão absurdas são as nossas concepções em relação àquele povo. Com isso, a crítica social seria feita, os muçulmanos seriam representados de uma forma que não fosse ofensiva a eles, e também poderiam rir da piada. 
Por José Coutinho Júnior
Fonte: Brasil de Fato

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