– Você tem dois minutinhos? Gostaria de lhe fazer algumas perguntas. É coisa rápida.
Eu estava no centro da cidade, meio-dia de uma segunda-feira, calor infernal, camisa ensopada de suor. Contas intermináveis para pagar no Banco. Filas intermináveis no trânsito. O verão é uma delícia.
– Fica pra próxima, me desculpe – eu disse para a mulher ao meu lado, sem diminuir os passos. Como se fosse um ímã, ela se aproximou e repetiu:
– É coisa rápida.
Parei. A mulher era de um instituto de pesquisa. Vestia-se de maneira simples, mas elegante. À primeira vista me pareceu bonita e exibia um generoso decote.
Ela agradeceu e mandou bala, prancheta e caneta preparadas:
– Para você, qual o personagem mais influente da História?
Desconfiei que fosse alguma pegadinha. Isso lá é pergunta que se faça? Pesquisa de verdade – pensei – avalia o grau de aceitação popular do Prefeito, do Governador, da Presidente. Pesquisa de verdade quer saber se estou de acordo com as taxas de juros, com o preço da carne, essas coisas.
Perguntei quais eram as alternativas. Não havia alternativa.
– Pilatos, respondi. Pilatos é o sujeito mais influente da História.
Ela resmungou alguma coisa e escreveu a resposta na folha. Parecia irritada, talvez confusa. Fazia um calor filho da puta.
– Pilatos, personagem bíblico, poderia ter salvado Jesus, mas lavou as mãos – eu disse.
– Eu sei quem foi Pilatos – ela cortou, ofendida. E o senhor deveria ter mais respeito pelas pessoas que estão trabalhando, como eu estou. Não farei as outras perguntas. Passar bem.
Olhou-me com fúria e se afastou. Deve ter achado que eu estava debochando ou que era algum fanático. Ela não entendeu a seriedade da minha resposta. Citei Pilatos porque ele é o Grande Indiferente.
Gramsci odiava os indiferentes. Eu não os odeio, eu os invejo. O indiferente é aquele que olha a barbárie e diz: “A vida é assim” e segue em frente, sem nenhum peso, sem nenhuma vontade de gritar, sem aquele sentimento destrutivo da impotência. No mundo de hoje, ser indiferente é um dos caminhos para a plena realização do espírito.
O indiferente – e só ele – considera o mundo imutável. Ele acha normal, natural mesmo, a injustiça, a calúnia, a corrupção, a ganância, a violência institucionalizada. Nada disso lhe diz respeito, nada disso lhe causa reação, portanto, o indiferente vive leve. E isso é invejável.
O guru dos indiferentes – quem mais seria? – é Pilatos. Não há, hoje em dia, ninguém com mais adeptos. Se você reparar bem, vai ver que está tudo dominado. Pilatos é pop.
O ano recém-terminado, é verdade, ameaçou essa hegemonia e popularidade. Uma massa de cidadãos, acostumados ao silêncio e à obediência, tomou as ruas do Oriente Médio e fez uma Primavera que ainda não terminou.
Como um vento, o ar de rebeldia chegou à Europa, com o Movimento dos Indignados, veio para a América do Sul, com os estudantes chilenos, e alcançou os Estados Unidos, com o Movimento Occupy. Para o indiferente, porém, tudo isso é fogo de palha e uma enfadonha perda de tempo.
O indiferente evita qualquer tipo de atrito, principalmente os atritos políticos. Ele odeia a política, mas esquece que quase todos os direitos que hoje usufrui foram conquistados com uma intensa luta política. Isso ele não sabe porque não lhe interessa, porque é um preguiçoso intelectual. Mas é um sujeito feliz. Aliás, só os indiferentes são felizes.
O indiferente deixa que a vida faça as escolhas por ele. É o destino quem manda e ele não se atreve a contestá-lo. A submissão é uma das suas mais marcantes características. O indiferente não sabe, nem quer saber, que seu silêncio é uma forma de cumplicidade e de covardia. Mas, e daí?
O indiferente não consegue entender a dimensão da solidariedade porque, no fundo, para evitar qualquer atrito, se obrigado, ele estará do lado do mais forte. O indiferente, por ser indiferente, está sempre do lado dos mais fortes. Por isso vence todas, ou quase todas.
O indiferente vive num mundo só dele, como uma bolha. É um mero observador, sem compromissos e, portanto, sem muitos incômodos. Esta é a sua lógica: “custe o que custar, não ter incômodo nenhum”. Obviamente, mesmo não querendo, ele tem seus problemas e, surpreso e triste, considera-se vítima do destino. Ele adora o papel de vítima.
O indiferente, como diria Eduardo Galeano, “não ilumina nem queima”. O indiferente é um pateta, mas é um pateta realizado e, por isso, eu o invejo profundamente.
O indiferente tem Pilatos como sua imagem e semelhança. Pilatos é o mais influente personagem da história, só a mulher decotada do Instituto de Pesquisa não sabe disso. Pilatos é o cara.
Por Fernando Evangelista
Fonte: Nota de Rodapé
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